Algumas
pessoas tem dificuldade para compreender porque tenho me dedicado tanto para
pagar uma equipe humanizada para o meu parto se tenho plano de saúde privado e
o SUS. A seguir você encontra os principais motivos que me levaram a empreender
toda minha energia para conseguir pagar minha equipe e espero que esse texto
fique de motivação para quem acha que não pode ter um parto humanizado porque
não tem dinheiro.
O contexto
Nós
estávamos desempregados, em meio à concretização de um planejamento de seis
meses de mudança de cidade, no qual sabíamos que teríamos privações materiais.
Diferentemente da primeira gravidez, a qual foi bastante planejada e esperada
por sete meses, essa gravidez aconteceu por um descuido. Então, nossas reservas
já tinham sido planejadas para serem utilizadas para nossa mudança. Um parto
não caberia no que tínhamos planejado... Como tínhamos tido uma experiência ruim no primeiro nascimento, correr o risco de passar por tudo de novo era
inaceitável. A gente estava com os dois pés fora da matrix. Parir no convênio
não era uma opção. No SUS uma possibilidade.
A realidade da assistência privada
Ter um plano de saúde e querer parir não
são coisas que podem ser somadas no Brasil. Na verdade, a rede privada tem umíndice de cesarianas de 83%, chegando a muito perto de 98% em algumasmaternidades. Funciona mais ou menos assim:
Opção
1: ou você encontra um obstetra que de cara vai marcar sua cesárea, a conhecida
cesárea eletiva. Talvez até digam que parto normal não existe mais, que as
mulheres não precisam passar mais por isso (oh god). São os obstetras cesaristas. Falam na cara que
não acompanham parto normal (humanizado então, nem se fala).
Opção
2.2: ou você encontra um obstetra fofinho. Aquele que vai te dizer que
acompanha parto normal SE tudo der
certo. Mas ao longo do pré-natal (aquele que você vai esperar 3 horas pra uma
consulta de 10 minutos) ele vai conseguir minar sua coragem ou até mesmo
encontrar mil motivos médicos (que não são baseados em evidências científicas,
como circular de cordão, bebê pélvico, não ter passagem entre outros mitos) pra
marcar a cesariana ou mesmo fazer o procedimento assim que você der o primeiro
sinal de trabalho de parto.
Opção
2.2: pode ser que você chegue parindo, com o bebê coroando. Esse obstetra “fofinho”
não sabe acompanhar um parto fisiológico e muito provavelmente vai correr pra
fazer uma episiotomia ou colocar um sorinho ou qualquer intervenção de rotina desnecessária sem nem perguntar a você nada.
Opção
3: ou o médico do plantão. É importante dizer que chegar em trabalho de parto é
visto de maneira muito esquisita pela maioria dos plantonistas. Obviamente eles
querem logo passar o caso pro obstetra que acompanha o caso. Ou “acabar logo com
tudo isso” pra não passar o plantão com trabalho pro outro plantonista. A
gestante parece uma espécie de batata quente e o parto um evento que precisa
ser terminado logo e aí... dá-lhe intervenções. Prestar uma assistência padrão
ouro, discutindo condutas e respeitando autonomia e protagonismo feminino é
bastante difícil pela rotina que o hospital segue e pela própria formação dos
profissionais da assistência que lá estão.
Pode até ser que você conheça alguém que
chegou parindo e que conseguiu um parto natural no hospital do convênio. Essa
mulher é bastante sortuda, ou seja, correu um risco significativo de ter uma
experiência de parto negativa.
Mas além de se preocupar com o parto em
si, é importante também saber das intervenções no recém-nascido, que, na
assistência hospitalar de rotina ainda são bastante invasivas.
Enfim, todas essas opções me parecem
bastante ruins. E hoje, compreendendo o funcionamento dessa indústria
milionária, eu não me submeteria nem ao pré-natal e nem à assistência ao parto
com um médico do convênio. Simplesmente não compactuo com esse modelo. Apesar
de ter plano de saúde privado, tenho utilizado apenas para fazer exames
solicitados pela minha equipe. E me privado de muitos incômodos como esperar
horas para ser atendida para uma consulta ridiculamente curta, sem olho no
olho. Esse sistema faliu e eu não compactuo com ele. Ele é violento pra todo
mundo. Enquanto nós mulheres não criarmos novas demandas, enquanto os
profissionais não se organizarem para melhores condições de trabalho, enquanto
a questão for tão mercadológica e egóica, acredito que a mudança vá ser bem
morosa.
Pré-natal humanizado, com participação da família e atenção integral gestante |
A
realidade da assistência pública
Eu sou apaixonada pelo projeto do SUS. E
até tentei fazer o pré-natal por ele quando cheguei a Brasília. Mas o caos
estava instalado, profissionais em greve e muitos outros problemas decorrentes
de uma má gestão. Na primeira gestação eu fiz pelo SUS em Parnamirim (RN) e
gostei bastante. As enfermeiras eram super atenciosas, apesar das palestras serem
bem ruins e tratarem as gestantes de maneira infantilizada, o que também
constatei aqui em Brasília. Como a qualidade do pré-natal no posto de saúde estava bem ruim, resolvi incluir no pacote da minha equipe.
Apesar de ter um índice menor de
cesarianas, cerca de 40%, o parto com intervenções ainda é a realidade da
assistência ao parto no SUS. Isso significa que mesmo não caindo numa cesariana
mal indicada (de acordo com as evidências científicas), eu entraria na escala
de produção do parto normal que consiste num pacote de intervenções que
comprovadamente tem um impacto negativo no desenvolvimento do parto fisiológico
e que são inclusive contra p que preconiza a Organização Mundial da Saúde tais
como: uso de ocitocina de rotina, episiotomia (ainda mais sem o consentimento
da gestante), limitação da escolha da posição para parir (a imensa maioria dos
obstetras dos hospitais públicos colocam a mulher naquela velha posição de
litotomia com a barriga pra cima, pernas naqueles apoios (muitas vezes
amarradas), entre outras condutas de terrorismo psicológico e outras cositas
más que são conhecidas também como violência obstétrica.
Saindo do modelo de assistência
hospitalar, eu teria a opção de uma casa de parto, se não fosse minha cesárea
anterior. No protocolo de assistência na Casa de Parto de São Sebastião (DF), não são acompanhados
partos vaginais de mulheres com cesariana prévia. Apesar de já existirem estudos
recentes mostrando que o índice de ruptura uterina não é significativamente
maior em partos vaginais após cesarianas. Enfim, na Casa de Parto tenho certeza
que conseguiria uma assistência humanizada e minha autonomia respeitada. Mas já
não era uma opção... então me restou o hospital de referência. Que eu teria que
parir com quem tivesse de plantão. Só que a dinâmica de um hospital é muito
diferente do de uma casa de parto. É um risco muito grande que eu decidi não
assumir como plano A. Mas definitivamente é meu plano B. No SUS, com as
portarias do Ministério da Saúde e outros fatores (como o funcionamento real de
uma ouvidoria) eu me sinto bem mais acolhida e com uma possibilidade maior de
conseguir um parto sem intervenção principalmente se mostrar que conheço meus
direitos. Infelizmente, essa é uma realidade que já escutei e presenciei
inúmeras vezes: acompanhantes e mulheres informados dos seus direitos, que
chegam com plano de parto e doula são tratados com um cuidado maior,
infelizmente pelos motivos errados medodeserprocessado. Fico mais
tranquila até em relação aos procedimentos com o bebê, já que as novas
portarias regulamentadoras vão de acordo com o que a humanização do parto
preconiza: pele a pele imediatamente, amamentação na primeira hora, alojamento
conjunto, clampeamento tardio do cordão umbilical. Na minha experiência percebo
um maior respeito a isso quando o profissional percebe que a mulher é informada
e discute a conduta.
O
panorama do Brasil: a violência obstétrica
Desde que ressignifiquei a experiência
negativa com o primeiro nascimento, me tornei uma ativista mais forte e mais
compreendida acerca do contexto em que fui violentada e que 25% das mulheres
brasileiras relatam ser.
Um quarto das mulheres brasileiras relatam terem sofrido algum tipo de violência durante seus partos. E tenho
certeza que esse número é muito maior, porque muitas mulheres não compreendem
que foram violentadas, já acostumadas a um modelo de assistência tão violento e
a serem tão submissas. A imensa maioria delas apenas guarda um sentimento
negativo em relação ao parto. Sentimentos que geralmente são passados para as próximas
gerações ao dizer que hoje em dia a mulher não precisa sofrer, que parto dói
muito entre outras coisas que estão em nossa memória coletiva de uma maneira
muito forte e que não fortalece as mulheres, apenas perpetua um modelo de
submissão e de sofrimento em relação ao parto e ao nascimento.
Já aconteceram inúmeras vezes: eu
começar a falar sobre violência obstétrica e alguma mulher começar a chorar por
se reconhecer nos sentimentos ou relatos que escuta. Inúmeras vezes. Ou por
falar em episiotomia e mutilação feminina e muitas começarem a perceber que se
sentiram assim e pensarem que era assim mesmo, que a dor pra sentar, pra ter
relação sexual era algo normal. E em todas ficarem absolutamente maravilhadas
como um parto pode ser bonito, ainda que dolorido. Em como a dor das contrações
pode ser ressignificada. Em como é possível até mesmo ter orgasmos durante o
parto. A maravilha é perceber outra possibilidade, muito mais bela e simples,
bem ali.
Onde eu puder minimizar os riscos de
passar por violência obstétrica novamente, eu o farei. Lutando contra um
sistema posto, contra achismos de todos ao redor, por um parto digno e
respeitoso.
O
valor de um parto
Para mim não importa quanto fosse.
Conversei com algumas equipes humanizadas, com doulas e fiz minha escolha.
Muito mais baseada em empatia do que em valores. Expliquei explicitamente para
todas envolvidas a situação da gravidez, a dificuldade financeira de não ter
uma reserva que pudesse ser usada para isso naquela hora, mas deixei bem claro
que faria tudo que estivesse ao meu alcance para conseguir. E a equipe foi super parceira em facilitar o máximo possível as condições de pagamento.
E tenho feito.
Economizamos bastante, deixamos de fazer
muitas coisas, buscamos alternativas mais baratas, vibrei abundância em todas
as minhas meditações, percebi o que poderia oferecer para trocar com as pessoas
por dinheiro para ajudar a pagar minha equipe. Nesse processo está sendo
fundamental o apoio das amigas e da família e da virtualidade. Tem sido uma
construção coletiva muito bonita e sou pura gratidão a todas as pessoas que tem
nos ajudado. No próximo post vou detalhar exatamente o plano que tracei para conseguir
o dinheiro pro meu parto, do zero.
O valor de um parto pra mim não é um
valor plástico, material. É um investimento: pra mim, pra minha família e pro
mundo. Acredito de verdade que podemos mudar uma sociedade deixando imprints de
amor e de acolhimento em quem chega ao invés de frio e solidão. Força de vontade, fé de que vai dar certo e movimento para fazer as coisas acontecerem são coisas muito importantes para viabilizar algo assim.Contar com amigos e família também é essencial. Ter conseguido quase a metade do valor total até agora já me mostra mais uma vez que juntos somos bem mais fortes! E que nada é impossível, por mais que pareça difícil.
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