quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Violência obstétrica não é drama, é realidade #VOBR2014

Reposto hoje o post: Violência obstétrica não é drama, é realidade, com algumas edições. O post falava do caso de violência obstétrica em Natal, ocorrido nesse ano. Reposto ele fazendo parte da Ação Coletiva contra a Violência Obstétrica de 2014 (#VOBR2014), em comemoração e promoção do documento publicado pela Organização Mundial de Saúde Prevenção e Eliminação de Abusos, desrespeitos e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde


Sabe, uma das coisas que mais me feriu depois que publiquei meu relato nas redes, foi o fato de uma pessoa muito próxima a mim dizer que eu estava fazendo drama. Que meu filho tinha nascido bem e era isso que importava. Isso me doeu profundamente. Quando uma pessoa expõe seus sentimentos e a outra os menospreza é uma falta de humanidade, de compaixão, de amor e de respeito ao próximo. E sim, meu filho estava bem. Mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Meu bebê estava bem, mas eu não estava. Ter com quem contar fez toda a diferença pra mim.

Algumas pessoas se mostraram desinformadas e duvidosas sobre o relato da Maria* e da versão do médico Iaperi Araújo. Outras acham puro drama. Muitos alguéns disseram por aí: Eu não acredito que Iaperi tenha feito isso, ele é referência na universidade (o professor tem dedicação exclusiva na UFRN, apesar de ter atendido a paciente em um hospital particular de Natal). 

Pra vocês que pensam assim eu tenho algumas coisas pra falar. Você pode continuar na sua bolha de desinformação ou pode ler e procurar se posicionar de maneira mais consciente sobre o que aconteceu. As pessoas tem lados bons, mas tem lados bem ruins também. E geralmente eles se mostram quando a pessoa tem um poder legitimado. Seja quando ela está em casa e agride a família, seja quando está num hospital e agride uma mulher, como foi o caso.

Sobre a veracidade da história: fatos são fatos
O médico obstetra Iaperi Araújo publicou em seu perfil um desabafo antiético expondo o caso de uma paciente que era chamada pejorativamente de surtada e comedora de placenta. A história contada por ele parecia surreal demais pra ser verdade. Quando vi pensei: tenho certeza que essa mulher foi violentada. Espero que ela consiga justiça e que não fique calada.

Dias depois eu recebi a ligação de uma mulher muito abalada, dizia que queria conversar comigo porque achava que tinha sido vítima de violência obstétrica. Falou mais ou menos aos prantos o que acontecera e combinamos de ir até sua casa para conversarmos pessoalmente e para que eu pudesse dar as orientações possíveis. Não sabia que estaria diante do relato mais sofrido de violência obstétrica da minha vida até agora.

Faz cerca de dois anos somente que venho recebendo diversos relatos de violência obstétrica em nosso estado, em nome do Movimento pela Humanização do Parto e Nascimento. Esse foi sem sombra de dúvida o mais impactante.

Ela e a família começaram a me contar e entre pausas e questionamentos ficou nítido o quanto o caso tinha abalado a todos. Em diversos momentos do relato me segurei para não chorar e conseguir dar o apoio que julgava necessário. Dei as orientações cabíveis, expliquei a ela a necessidade de escrever um relato, tanto para expor sua versão, quanto para seu próprio processo de cura. Manteríamos contato dali em diante e ela poderia contar comigo.

Entrei no carro e chorei bastante. Fico sempre muito tocada com os relatos das mulheres, mas esse... era carregado de tanta violação, de tanto machismo, de tanta omissão de todos que ali estavam e que nada fizeram, de tanta falta de apoio de quem poderia ajudar... Estou desde então sem dormir direito, inquieta. Fico pensando se consigo lidar com tudo isso. As pessoas ao meu redor dizem que tenho que saber diferenciar o que é meu e o que não é, mas pra mim eu e ela estamos conectadas. Assim como todos nós estamos. E eu preciso encontrar uma maneira de mudar isso. Lembro claramente do momento em que decidir criar o Movimento, quando estava lá embaixo numa depressão e quando ainda escutava que a Promater tinha proibido a entrada de doulas depois de alguns partos naturais lindos. Busquei força no meu filho. E em outras mulheres. E lembro de uma frase que me motivou:

Quando eu me curo
Eu curo a outra

Eu ia lutar todos os dias para que nenhuma mulher precisasse passar pelo que passei. E foi isso que me motivou a me fortalecer novamente. Precisava encontrar meu eixo para seguir na luta.

Entrei em contato com as ativistas mais engajadas, com toda a blogosfera materna, com alguns blogs feministas. Contei o caso. Falei do relato, mas não o tinha em mãos. Torcia para que ela escrevesse, mas sabia do quanto escrever sobre o fato era um desafio emocional. Muitas mulheres me procuram, desabafam. Mas poucas conseguem seguir adiante para lidar com isso. Mas ela não. No dia combinado eu recebia o relato virtualmente. Rapidamente o repassei a quem poderia interessar. E então se formava a grande rede de apoio¹.

Então eu sou testemunha de que o que aconteceu aconteceu. Eu mais três ativistas que estão envolvidas com o amparo legal do caso. E uma jornalista. Sim, o caso aconteceu.

Sobre o anonimato
Mas por que ela não tem nome nem cara? Não aparece em nenhum lugar?
Obviamente se você faz essas perguntas, você precisa de mais solidariedade com o outro. Vou te colocar na seguinte situação: imagina que você sofreu um estupro. Você vai fazer o que? Colocar na rede social e sair contando pra todo o mundo? Mas por que você não faria isso? Não é uma situação agradável, não é? Não é uma situação que você queira reviver com essa frequência.

Agora imagina a situação da Maria*. Era o momento mais legal que ela poderia viver, o nascimento de seu filho. E esse momento foi roubado. Ela foi violentada, se sentiu abusada sexualmente. E mesmo assim cuida de seu filho 24h por dia como qualquer outra mãe no puerpério, lidando com todas as dificuldades naturalmente já impostas por essa fase. Mas além disso ela tem que lidar com pessoas insensíveis que emitem julgamento porque reconheceram ela pela publicação do médico Iaperi. A publicação teve sim repercussão negativa em sua vida.

Então não, ela não vai se expor mais ainda. Ela quer curtir o que lhe resta. E para ter voz ela não precisa ter cara. Todas nós mulheres damos voz a ela. E trabalharemos até que algum tipo de justiça seja feito. E vamos nos unir e nos fortalecer cada vez mais para mudar esse sistema.

Violência obstétrica não é drama, é realidade.
Mas depois de ler isso tudo pode ser que exista pessoas que acham que possa ter acontecido algo sim, mas que a história é muito dramática.

Xa eu falar uma coisa pra você: Violência obstétrica não é drama, é realidade.

Muitas mulheres nem sabem que sofreram violência obstétrica. Mas relatam sentirem uma memória ruim em relação ao parto. Nessa sociedade machista e nesse sistema patriarcal (sim, sou feminista e luto pela igualdade), com a interpretação pra lá de medieval do “parirás com dor”, a mulher que luta pela autonomia de seu corpo e de sua vida é taxada de surtada, com o objetivo de humilhá-la e deslegitimar seu poder de escolha.

Então, vou colocar algumas fontes confiáveis para você se informar e ver que violência obstétrica não é drama e que é uma realidade das maternidades públicas e privadas brasileiras. Ah, vale ressaltar que cesárea não salva ninguém de violência não tá? A violência obstétrica é institucional e de gênero. Ou seja, só por ser mulher é um fator de risco.
Vamos lá:
Não importa sua opinião pessoal sobre a mulher. Houve agressão, realização de procedimentos contrários às diretrizes do MS e da OMS, à portaria 371 e muita falta de respeito. Isso é uma violência. 

Mas se você ainda não ficou sensibilizado com o caso, faça o seguinte: fique grávid@ ou acompanhe alguém grávida que queira ter um parto natural, seguindo as recomendações da OMS, e diga que tem direito de decisão sobre seu corpo, que você quer respeito a sua autonomia e você terá uma grande probabilidade em testemunhar atos de violência obstétrica. Porque você está indo contra um sistema muito produtivo para a indústria do nascimento. Porque você depois vai ter que ir contra o corporativismo médico. Porque as pessoas esqueceram do que é prestar o cuidado. E a violência preenche as práticas rotineiras intervencionistas desses profissionais da assistência ao parto e nascimento.

Mas eu queria encontrar ela para dar um apoio
Deixe sua mensagem de apoio aqui: http://nosnaodormimos.tumblr.com/

E o que vocês estão fazendo?
Estamos em rede de apoio. A Lígia, do Cientista que virouMãe e as mulheres da Artemis estão coladinhas com o caso para ter encaminhamento, como o ocorrido com o caso de Adelir. Uma denúncia já foi entregue e acompanharemos o encaminhamento.


¹O Movimento pela Humanização do Parto e Nascimento no Brasil tem uma força muito grande, porque trabalha em rede. Se você sofreu violência obstétrica em Natal e se sente preparada para denunciar, denuncie. Você não está só. É extremamente essencial que a violência obstétrica saia da invisibilidade. Precisamos mudar essa realidade, todos os dias. Se você testemunhar alguma violência também, não fique calado. Ajude a fazer uma sociedade de paz.


Juntas somos mais fortes

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