Sabe, uma das coisas que mais me
feriu depois que publiquei meu relato nas redes, foi o fato de uma pessoa muito
próxima a mim dizer que eu estava fazendo drama. Que meu filho tinha nascido
bem e era isso que importava. Isso me doeu profundamente. Quando uma pessoa
expõe seus sentimentos e a outra os menospreza é uma falta de humanidade, de
compaixão, de amor e de respeito ao próximo. E sim, meu filho estava bem. Mas
uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Meu bebê estava bem, mas eu não estava. Ter com quem contar fez
toda a diferença pra mim.
Algumas pessoas se mostraram
desinformadas e duvidosas sobre o relato da Maria* e da versão do médico Iaperi
Araújo. Outras acham puro drama. Muitos alguéns disseram por aí: Eu não
acredito que Iaperi tenha feito isso, ele é referência na universidade (o
professor tem dedicação exclusiva na UFRN, apesar de ter atendido a paciente em
um hospital particular de Natal).
Pra vocês que pensam assim eu tenho
algumas coisas pra falar. Você pode continuar na sua bolha de desinformação ou
pode ler e procurar se posicionar de maneira mais consciente sobre o que
aconteceu. As pessoas tem lados bons, mas tem lados bem ruins também. E
geralmente eles se mostram quando a pessoa tem um poder legitimado. Seja quando
ela está em casa e agride a família, seja quando está num hospital e agride uma
mulher, como foi o caso.
Sobre a veracidade da
história: fatos são fatos
O médico obstetra Iaperi Araújo
publicou em seu perfil um desabafo antiético expondo o caso de uma paciente que
era chamada pejorativamente de surtada e comedora de placenta. A história
contada por ele parecia surreal demais pra ser verdade. Quando vi pensei: tenho
certeza que essa mulher foi violentada. Espero que ela consiga justiça e que
não fique calada.
Dias depois eu recebi a ligação
de uma mulher muito abalada, dizia que queria conversar comigo porque achava
que tinha sido vítima de violência obstétrica. Falou mais ou menos aos prantos o
que acontecera e combinamos de ir até sua casa para conversarmos pessoalmente e
para que eu pudesse dar as orientações possíveis. Não sabia que estaria diante
do relato mais sofrido de violência obstétrica da minha vida até agora.
Faz cerca de dois anos somente que
venho recebendo diversos relatos de violência obstétrica em nosso estado, em
nome do Movimento pela Humanização do Parto e Nascimento. Esse foi sem sombra
de dúvida o mais impactante.
Ela e a família começaram a me
contar e entre pausas e questionamentos ficou nítido o quanto o caso tinha
abalado a todos. Em diversos momentos do relato me segurei para não chorar e
conseguir dar o apoio que julgava necessário. Dei as orientações cabíveis,
expliquei a ela a necessidade de escrever um relato, tanto para expor sua
versão, quanto para seu próprio processo de cura. Manteríamos contato dali em
diante e ela poderia contar comigo.
Entrei no carro e chorei
bastante. Fico sempre muito tocada com os relatos das mulheres, mas esse... era
carregado de tanta violação, de tanto machismo, de tanta omissão de todos que
ali estavam e que nada fizeram, de tanta falta de apoio de quem poderia ajudar... Estou desde então sem dormir direito, inquieta. Fico pensando se consigo lidar com tudo isso. As pessoas ao meu redor dizem que
tenho que saber diferenciar o que é meu e o que não é, mas pra mim eu e ela
estamos conectadas. Assim como todos nós estamos. E eu preciso encontrar
uma maneira de mudar isso. Lembro claramente do momento em que decidir criar o
Movimento, quando estava lá embaixo numa depressão e quando ainda escutava que
a Promater tinha proibido a entrada de doulas depois de alguns partos naturais
lindos. Busquei força no meu filho. E em outras mulheres. E lembro de uma frase que me motivou:
Quando eu me curo
Eu curo a outra
Eu ia lutar todos os dias para
que nenhuma mulher precisasse passar pelo que passei. E foi isso que me motivou
a me fortalecer novamente. Precisava encontrar meu eixo para seguir na luta.
Entrei em contato com as
ativistas mais engajadas, com toda a blogosfera materna, com alguns blogs
feministas. Contei o caso. Falei do relato, mas não o tinha em mãos. Torcia
para que ela escrevesse, mas sabia do quanto escrever sobre o fato era um
desafio emocional. Muitas mulheres me procuram, desabafam. Mas poucas conseguem
seguir adiante para lidar com isso. Mas ela não. No dia combinado eu recebia o
relato virtualmente. Rapidamente o repassei a quem poderia interessar. E então
se formava a grande rede de apoio¹.
Então eu sou testemunha de que o
que aconteceu aconteceu. Eu mais três ativistas que estão envolvidas com o
amparo legal do caso. E uma jornalista. Sim, o caso aconteceu.
Sobre o anonimato
Mas por que ela não tem nome nem
cara? Não aparece em nenhum lugar?
Obviamente se você faz essas
perguntas, você precisa de mais solidariedade com o outro. Vou te colocar na
seguinte situação: imagina que você sofreu um estupro. Você vai fazer o que?
Colocar na rede social e sair contando pra todo o mundo? Mas por que você não
faria isso? Não é uma situação agradável, não é? Não é uma situação que você
queira reviver com essa frequência.
Agora imagina a situação da
Maria*. Era o momento mais legal que ela poderia viver, o nascimento de seu
filho. E esse momento foi roubado. Ela foi violentada, se sentiu abusada
sexualmente. E mesmo assim cuida de seu filho 24h por dia como qualquer outra
mãe no puerpério, lidando com todas as dificuldades naturalmente já impostas
por essa fase. Mas além disso ela tem que lidar com pessoas insensíveis que
emitem julgamento porque reconheceram ela pela publicação do médico Iaperi. A
publicação teve sim repercussão negativa em sua vida.
Então não, ela não vai se expor
mais ainda. Ela quer curtir o que lhe resta. E para ter voz ela não precisa ter
cara. Todas nós mulheres damos voz a ela. E trabalharemos até que algum tipo de
justiça seja feito. E vamos nos unir e nos fortalecer cada vez mais para mudar
esse sistema.
Violência obstétrica não é
drama, é realidade.
Mas depois de ler isso tudo pode
ser que exista pessoas que acham que possa ter acontecido algo sim, mas que a
história é muito dramática.
Xa eu falar uma coisa pra você:
Violência obstétrica não é drama, é realidade.
Muitas mulheres nem sabem que
sofreram violência obstétrica. Mas relatam sentirem uma memória ruim em relação
ao parto. Nessa sociedade machista e nesse sistema patriarcal (sim, sou
feminista e luto pela igualdade), com a interpretação pra lá de medieval do “parirás
com dor”, a mulher que luta pela autonomia de seu corpo e de sua vida é taxada
de surtada, com o objetivo de humilhá-la e deslegitimar seu poder de escolha.
Então, vou colocar algumas fontes
confiáveis para você se informar e ver que violência obstétrica não é drama e
que é uma realidade das maternidades públicas e privadas brasileiras. Ah, vale
ressaltar que cesárea não salva ninguém de violência não tá? A violência
obstétrica é institucional e de gênero. Ou seja, só por ser mulher é um fator
de risco.
Vamos lá:
- Violência institucional emmaternidades públicas: hostilidade ao invés de acolhimento como uma questão degênero - Tese de doutorado da Janaína Marques de Aguiar
- Ley Orgánica Sobre El Derecho de las Mujeres a una VidaLibre de Violencia – Lei da Venezuela que caracteriza e pune atos de violência obstétrica
- Documentários: Violência Obstétrica: a voz das brasileiras, A dor além do parto
- PL 7633/14: Projeto de Lei entregue pela Artemis que abrange aspectos da humanização ao parto e nascimento e da violência obstétrica
- Dossiê Violência Obstétrica: Parirás com Dor elaborado pela ONG Parto do Princípio para a CPMI de Violência contra as mulheres
- Denúncia caso Torres/RS entregue pela Artemis referente a uma cesárea contra a vontade da paciente. www.somostodxsadelir.wordspress.com
Não importa sua opinião pessoal sobre a mulher. Houve agressão, realização de procedimentos contrários às diretrizes do MS e da OMS, à portaria 371 e muita falta de respeito. Isso é uma violência.
Mas se você ainda não ficou sensibilizado com o caso, faça o
seguinte: fique grávid@ ou acompanhe alguém grávida que queira ter um parto
natural, seguindo as recomendações da OMS, e diga que tem direito de decisão
sobre seu corpo, que você quer respeito a sua autonomia e você terá uma grande
probabilidade em testemunhar atos de violência obstétrica. Porque você está
indo contra um sistema muito produtivo para a indústria do nascimento. Porque
você depois vai ter que ir contra o corporativismo médico. Porque as pessoas
esqueceram do que é prestar o cuidado. E a violência preenche as
práticas rotineiras intervencionistas desses profissionais da assistência ao parto e nascimento.
Mas eu queria encontrar ela para dar um apoio
Deixe sua mensagem de apoio aqui: http://nosnaodormimos.tumblr.com/
E o que vocês estão fazendo?
Estamos em rede de apoio. A Lígia, do Cientista que virouMãe e as mulheres da Artemis estão coladinhas com o caso para ter
encaminhamento, como o ocorrido com o caso de Adelir. Uma denúncia já foi
entregue e acompanharemos o encaminhamento.
Você sabia?
O médico Iaperi (que disse que ia deixar a obstetrícia
#torcemos) tem um processo no passado. Ele foi acusado
pela morte de um bebê pelo uso de fórceps.
¹O Movimento pela Humanização do Parto e Nascimento no
Brasil tem uma força muito grande, porque trabalha em rede. Se você sofreu violência
obstétrica em Natal e se sente preparada para denunciar, denuncie. Você não
está só. É extremamente essencial que a violência obstétrica saia da
invisibilidade. Precisamos mudar essa realidade, todos os dias. Se você
testemunhar alguma violência também, não fique calado. Ajude a fazer uma
sociedade de paz.
Juntas somos mais fortes
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