domingo, 31 de março de 2013

Meu relato de parto


Tava faltando meu relato de parto por aqui. Ele não foi nada como o esperado. A única coisa que saiu como eu queria foi que meu pequeno nasceu com saúde e bem. Me dói saber que não recebi a pessoa que mais amo na vida como eu queria. Enquanto tudo acontecia eu não sabia que estava sendo vítima de violência obstétrica, mas sentia que aquilo ali era muito ruim... Depois descobri que muitas outras mulheres passaram por situações parecidas com a minha. 1/4 das mulheres brasileiras.

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Eu me tremia toda. Toda mesmo. A enfermeira veio e desligou o ar condicionado. Eu sabia que não era frio. Era pura adrenalina. Estava sondada, até que não foi tão ruim, a técnica em enfermagem foi bem gentil e ficava conversando comigo enquanto colocava a sonda. Eu já me tremia antes, mas agora estava imoral. Tentava me controlar, respirava fundo, mas quando eu abria os olhos e via que estava deitada em uma estreita maca em um centro cirúrgico com uma luz de nave espacial em cima de mim, eu me tremia muito mais do que antes de me controlar. E aí ele chegou, o anestesista. Cara estranho aquele. Chegou, se apresentou de uma maneira ríspida –“Eu sou o anestesista” e mandou que me virasse de lado. Era um homem por volta dos seus 50 e definitivamente ele não me parecia feliz de estar ali. Fiquei me perguntando onde estava a anestesista que a obstetra tinha dito que acompanhava ela nas cesáreas. Minha barriga estava enorme, a mobilidade de uma grávida às 41 semanas de gestação não é lá essas coisas. Enfim, tentei virar de lado e não consegui sozinha. Estava com medo de cair daquela maca estreita. Pedi ajuda à técnica em enfermagem, me virei e ele começou a palpar minha coluna. Ele não ficou feliz, murmurava algo como – “a coluna dela é muito ruim de achar” – e aí minha adrenalina disparou. Eu já tinha pavor de ter que passar por uma cesárea, tinha mais medo ainda da anestesia da cesárea, e ainda um cara esquisito daquele falava que minha coluna era ruim? Bom, me parece que ele não achou o que tinha que achar comigo deitada, então mandou que eu me sentasse e ficasse com a cabeça abaixada.  Mais uma vez a técnica me ajudou. Sozinha eu não conseguia ficar parada de tanto que tremia. Ele então, como um general que dá a ordem de atirem os canhões!, mandou que chamasse um enfermeiro para me segurar. O enfermeiro entrou no centro cirúrgico dizendo que eram 22:01 e que o plantão dele já tinha terminado, mas o que ele poderia fazer né? Fiquei mais desesperada ainda. Já estava pensando em possíveis rotas de fuga, talvez se eu saísse correndo dali eu ia parir naturalmente em um lugar menos insensível. Foi quando o enfermeiro me abraçou e segurou meu pescoço pra baixo e ficou falando pra eu ter calma. Ele foi o único, até então, que percebeu que eu estava absurdamente nervosa e que fez alguma coisa pra me ajudar. Então o anestesista furou uma, duas, resmungou, três e finalmente na quarta vez ele conseguiu achar o que queria e a anestesia pegou. Lembro vagamente que mandaram meu marido entrar, colocaram um pano na minha frente, amarraram meu braço esquerdo com um soro e o braço direito com um aparelho de pressão e eu fiquei deitada ali como Jesus na cruz, pedindo ajuda de anjo da guarda, Deus, minhas ancestrais, todo mundo que eu lembrasse para que enfrentasse aquele momento do melhor jeito possível. Tudo foi muito rápido. A obstetra pediu que eu ficasse calma e falou que tudo ocorreria bem. Meu marido estava sentado em um canto e eu fixava meu olhar no dele para me sentir um pouco menos insegura com aquilo tudo. Estava me sentindo como um pedaço de carne qualquer em um açougue. Queria que tirassem logo meu filho e que me dessem para eu abraçá-lo. Então alguém do outro lado do pano disse: nossa como ele é cabeludo! E rosa! Aí eu pude escutá-lo chorando. Eu e meu marido choramos também, felizes pelo nosso menino! Demorou um pouquinho, a pediatra levou ele para fazer os procedimentos ali mesmo na sala, e quando eu vi as intervenções virei o rosto para o outro lado, senti meu coração apertar e segurei muito fortemente um choro de desespero. Tudo saíra tão diferente de tudo que eu sempre quis. Durante a gravidez fiz várias mentalizações, exercícios, estudei a fisiologia do parto, queria muito um parto natural, com a doula e meu marido, no quarto do hospital. Mas naquele dia da cirurgia, havia feito uma ultra que mostrava líquido amniótico com nível 5.8. Logo que saí de lá levei o exame para a obstetra que me acompanhava e ela disse que por eu querer muito um parto normal ela iria tentar a indução. Colocou a primeira ampola e dali a 6 horas eu voltaria a encontrá-la para ver como estavam as contrações. Bom, é importante dizer que eu estava com contrações irregulares havia mais de uma semana, dilatação de 2 cm e colo grosso. Ficamos esperando, mas tinha chegado no limite dela. Depois eu descobri que 6h de indução não é absolutamente nada. Um processo de indução pode durar 48h e exige muita paciência e habilidade para conduzir. Eu pensava que se esperássemos poderia entrar em trabalho de parto de fato. E que estar a uma semana com a mesma dilatação não significava nada porque o trabalho de parto poderia engatar a qualquer momento. Sabia também que 5.8 de líquido não era, pelas evidências científicas, indicação de cesárea. Mas ela disse naquela manhã que iria esperar no máximo até a manhã seguinte. Colocamos a primeira ampola pela manhã e quando voltei no final da tarde, as contrações não tinham engatado e a dilatação estava do mesmo jeito. Foi então que ela me disse: Agora a minha conduta é cesárea. Engoli uma bola gigante de medo e tristeza. Queria que aquilo fosse uma brincadeira. Mas não foi... não consegui nem olhar para meu marido nem pra minha mãe. Liguei pra doula e falei meio atravessado, rápido. Voltando ao centro cirúrgico após as milhões de aspirações, peso, medidas e etc, ela colocou ele por 3 segundos no máximo no bico do meu peito pra ver se ele sugava. É óbvio que não sugou. Ele nem devia estar entendendo o que tava acontecendo ali. Mas a pressa era grande e a sensibilidade, pouca. Ela ensaiou embrulhar ele e levá-lo. Meu marido pediu para segurar nosso filho. Ele pediu. Acho que ela não teria entregue se não tivesse pedido. Tamanha falta de noção essa. O filho acaba de nascer e você já quer levá-lo pro berçário? Nananinanão. Enfim, nosso bebê passou algum tempo no colo dele e depois ele PEDIU para que colocassem perto de mim. E aí meu coração se apertou muito e eu engoli um puta choro de desespero por não poder envolvê-lo em meus braços como eu queria, pegá-lo no colo, porque ninguém veio desamarrar meus braços. A pediatra o colocou ao lado do meu rosto e como um cachorro, que lambe a cria depois que nasce, eu passei meu nariz e meu rosto em sua bochecha várias vezes e só dizia que eu o amava muito. Depois saíram pediatra, meu marido e nosso bebê. O anestesista passou com uma seringa gigante e perguntou se eu tinha alergia a plasil. Eu disse que nunca tinha tomado. Ele então injetou lá no soro e foi embora. Então, enquanto me fechavam, eu tentei conversar algo, e então a obstetra disse que daquele jeito eu ia ficar cheia de gases (pelo visto isso deveria ser óbvio pra mim, mas eu não sabia disso) e logo em seguida alguém disse: “Tá achando que tá na terapia é?” Meus olhos lacrimejaram. Fiquei muito mal nesse momento por perceber que todas aquelas pessoas ali não entendiam a importância de um momento como aquele. Não só pra mim e pro meu marido. Mas pra humanidade. O nascimento é um evento maravilhoso e o modo que nascemos influencia absurdamente na nossa sociedade. Fechei meus olhos e fiz uma pequena oração pedindo mais sensibilidade, mais amor e mais humanidade praquelas pessoas. Se elas não viam o nascimento como um milagre da vida, imagino como elas viam as outras coisas da vida. Então quando abri os olhos senti uma coceira enorme. Nos olhos e na boca. Muito angustiante. Pedi para alguém vir coçar meus olhos porque estava insuportável e então alguém disse: tira o aparelho de pressão do braço dela pra ela coçar. OI? Na hora de abraçar meu filho não pode mas pra coçar o olho e não incomodar ninguém aí pode desamarrar o braço? COMO É ISSO MINHA GENTE? E a tristeza me consumia. Eu percebi que estava ficando meio grogue. Foi quando notei que estava sozinha na sala com a técnica em enfermagem. Achei que ela deveria estar fazendo algum curativo. Fiquei calada. Então uma enfermeira entrou e começou a dar uma bronca nela. Não entendi direito aquilo, na verdade só depois que a memória veio inteira: ela estava tirando pelos encravados da minha virilha. Sem pedir autorização, sem cogitar que ali estava uma pessoa. Após a bronca, ela se retirou. Mais uma vez confirmei: ali eu era tratada como pedaço de carne. Por um momento desejei morrer (drama Queen + plasil + raquidiana). Só lembro que depois acordei na sala de recuperação me tremendo muito mais do que no início da cirurgia. Achei esquisito, porque eu não estava mais com medo, não estava com frio. Chamei alguém que avistei passando e perguntei: essa tremedeira é normal? Ela disse: é, é a morfina da anestesia. Perguntei: quando vou para o quarto? Ela disse algum horário que eu não me recordo. Da sala de recuperação eu lembro de cada segundo, de cada tremor, de cada coçada de olho, de boca. Lembro da luz branca na minha cara. Lembro do silêncio. Do frio. Pensei que se eu convulsionasse ninguém ia ver porque não tinha ninguém ali. Finalmente chegou alguém e me levou para o quarto. E aí encontrei minha mãe e meu marido e falei o que consegui falar: o tremor é da anestesia. Perguntei pro meu marido se tinham dado leite artificial e ele disse que mesmo ele pedindo, eles deram, porque era protocolo do hospital (?). Logo depois meu bebê chegou e foi um sentimento tão ruim não poder pegá-lo, cheirá-lo. Tinha que ficar ali, deitada e ainda queriam que eu não conversasse. Um sentimento de impotência. Nos dias seguintes foi muito ruim. A recuperação de uma cirurgia desse porte é pra ser levada a sério. Senti por 15 dias dor na coluna da anestesia. Não conseguia ninar meu bebê. Não conseguia dar banho nele. Não conseguia tirar e colocá-lo na cama. Foi horrível não poder me doar como eu queria para meu bebê.
Sair do hospital foi maravilhoso. No caminho pra casa sentia como se meus órgãos estivessem soltos. Só consegui ver a cicatriz muito tempo depois. Só consegui tocá-la muito mais tempo depois ainda. Mas penso que a cicatriz física não é nada comparado ao que eu sinto ao saber que essa é a maneira que pessoas vem chegando ao mundo. Fico pensando se recebêssemos uma pessoa em nossa casa de maneira tão violenta. E depois as pessoas pedem mais sensibilidade da sociedade, reclamam da violência. E desconsideram a vontade de um ser vivo que está chegando. Essa relação com o parto normal, de nojo, de medo da “dor”, de pura ignorância diz muito da maneira que enfrentamos a vida. Mas ainda há esperança. Espero que esse relato tenha  te afetado. Não foi fácil escrevê-lo. Mas eu sei da importância de relatos assim para outras mulheres e pra mudar a maneira que o nascimento vem sendo lidado no Brasil. Eu ainda terei meu VBAC (vaginal birth after cesarean), de maneira natural, Humana, sensível e bela.

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