Tava faltando meu relato de parto por aqui. Ele não foi nada como o esperado. A única coisa que saiu como eu queria foi que meu pequeno nasceu com saúde e bem. Me dói saber que não recebi a pessoa que mais amo na vida como eu queria. Enquanto tudo acontecia eu não sabia que estava sendo vítima de violência obstétrica, mas sentia que aquilo ali era muito ruim... Depois descobri que muitas outras mulheres passaram por situações parecidas com a minha. 1/4 das mulheres brasileiras.
. . .
Eu
me tremia toda. Toda mesmo. A enfermeira veio e desligou o ar condicionado. Eu
sabia que não era frio. Era pura adrenalina. Estava sondada, até que não foi
tão ruim, a técnica em enfermagem foi bem gentil e ficava conversando comigo
enquanto colocava a sonda. Eu já me tremia antes, mas agora estava imoral.
Tentava me controlar, respirava fundo, mas quando eu abria os olhos e via que
estava deitada em uma estreita maca em um centro cirúrgico com uma luz de nave
espacial em cima de mim, eu me tremia muito mais do que antes de me controlar.
E aí ele chegou, o anestesista. Cara estranho aquele. Chegou, se apresentou de
uma maneira ríspida –“Eu sou o anestesista” e mandou que me virasse de lado.
Era um homem por volta dos seus 50 e definitivamente ele não me parecia feliz
de estar ali. Fiquei me perguntando onde estava a anestesista que a obstetra
tinha dito que acompanhava ela nas cesáreas. Minha barriga estava enorme, a
mobilidade de uma grávida às 41 semanas de gestação não é lá essas coisas.
Enfim, tentei virar de lado e não consegui sozinha. Estava com medo de cair
daquela maca estreita. Pedi ajuda à técnica em enfermagem, me virei e ele
começou a palpar minha coluna. Ele não ficou feliz, murmurava algo como – “a
coluna dela é muito ruim de achar” – e aí minha adrenalina disparou. Eu já
tinha pavor de ter que passar por uma cesárea, tinha mais medo ainda da
anestesia da cesárea, e ainda um cara esquisito daquele falava que minha coluna
era ruim? Bom, me parece que ele não achou o que tinha que achar comigo deitada,
então mandou que eu me sentasse e ficasse com a cabeça abaixada. Mais uma vez a técnica me ajudou. Sozinha eu
não conseguia ficar parada de tanto que tremia. Ele então, como um general que
dá a ordem de atirem os canhões!,
mandou que chamasse um enfermeiro para me segurar. O enfermeiro entrou no
centro cirúrgico dizendo que eram 22:01 e que o plantão dele já tinha
terminado, mas o que ele poderia fazer né? Fiquei mais desesperada ainda. Já
estava pensando em possíveis rotas de fuga, talvez se eu saísse correndo dali
eu ia parir naturalmente em um lugar menos insensível. Foi quando o enfermeiro
me abraçou e segurou meu pescoço pra baixo e ficou falando pra eu ter calma.
Ele foi o único, até então, que percebeu que eu estava absurdamente nervosa e que
fez alguma coisa pra me ajudar. Então o anestesista furou uma, duas, resmungou,
três e finalmente na quarta vez ele conseguiu achar o que queria e a anestesia
pegou. Lembro vagamente que mandaram meu marido entrar, colocaram um pano na
minha frente, amarraram meu braço esquerdo com um soro e o braço direito com um
aparelho de pressão e eu fiquei deitada ali como Jesus na cruz, pedindo ajuda
de anjo da guarda, Deus, minhas ancestrais, todo mundo que eu lembrasse para
que enfrentasse aquele momento do melhor jeito possível. Tudo foi muito rápido.
A obstetra pediu que eu ficasse calma e falou que tudo ocorreria bem. Meu
marido estava sentado em um canto e eu fixava meu olhar no dele para me sentir
um pouco menos insegura com aquilo tudo. Estava me sentindo como um pedaço de
carne qualquer em um açougue. Queria que tirassem logo meu filho e que me
dessem para eu abraçá-lo. Então alguém do outro lado do pano disse: nossa como
ele é cabeludo! E rosa! Aí eu pude escutá-lo chorando. Eu e meu marido choramos
também, felizes pelo nosso menino! Demorou um pouquinho, a pediatra levou ele
para fazer os procedimentos ali mesmo na sala, e quando eu vi as intervenções
virei o rosto para o outro lado, senti meu coração apertar e segurei muito
fortemente um choro de desespero. Tudo saíra tão diferente de tudo que eu
sempre quis. Durante a gravidez fiz várias mentalizações, exercícios, estudei a
fisiologia do parto, queria muito um parto natural, com a doula e meu marido,
no quarto do hospital. Mas naquele dia da cirurgia, havia feito uma ultra que
mostrava líquido amniótico com nível 5.8. Logo que saí de lá levei o exame para
a obstetra que me acompanhava e ela disse que por eu querer muito um parto
normal ela iria tentar a indução. Colocou a primeira ampola e dali a 6 horas eu
voltaria a encontrá-la para ver como estavam as contrações. Bom, é importante
dizer que eu estava com contrações irregulares havia mais de uma semana,
dilatação de 2 cm e colo grosso. Ficamos esperando, mas tinha chegado no limite
dela. Depois eu descobri que 6h de indução não é absolutamente nada. Um processo de indução pode durar 48h e exige muita paciência e habilidade para conduzir. Eu pensava que se esperássemos poderia entrar em trabalho de parto de fato.
E que estar a uma semana com a mesma dilatação não significava nada porque o
trabalho de parto poderia engatar a qualquer momento. Sabia também que 5.8 de
líquido não era, pelas evidências científicas, indicação de cesárea. Mas ela
disse naquela manhã que iria esperar no máximo até a manhã seguinte. Colocamos
a primeira ampola pela manhã e quando voltei no final da tarde, as contrações
não tinham engatado e a dilatação estava do mesmo jeito. Foi então que ela me
disse: Agora a minha conduta é cesárea. Engoli uma bola gigante de medo e
tristeza. Queria que aquilo fosse uma brincadeira. Mas não foi... não consegui
nem olhar para meu marido nem pra minha mãe. Liguei pra doula e falei meio
atravessado, rápido. Voltando ao centro cirúrgico após as milhões de
aspirações, peso, medidas e etc, ela colocou ele por 3 segundos no máximo no
bico do meu peito pra ver se ele sugava. É óbvio que não sugou. Ele nem devia
estar entendendo o que tava acontecendo ali. Mas a pressa era grande e a
sensibilidade, pouca. Ela ensaiou embrulhar ele e levá-lo. Meu marido pediu
para segurar nosso filho. Ele pediu. Acho que ela não teria entregue se não
tivesse pedido. Tamanha falta de noção essa. O filho acaba de nascer e você já
quer levá-lo pro berçário? Nananinanão. Enfim, nosso bebê passou algum tempo no
colo dele e depois ele PEDIU para que colocassem perto de mim. E aí meu coração
se apertou muito e eu engoli um puta choro de desespero por não poder
envolvê-lo em meus braços como eu queria, pegá-lo no colo, porque ninguém veio
desamarrar meus braços. A pediatra o colocou ao lado do meu rosto e como um
cachorro, que lambe a cria depois que nasce, eu passei meu nariz e meu rosto em
sua bochecha várias vezes e só dizia que eu o amava muito. Depois saíram
pediatra, meu marido e nosso bebê. O anestesista passou com uma seringa gigante
e perguntou se eu tinha alergia a plasil. Eu disse que nunca tinha tomado. Ele
então injetou lá no soro e foi embora. Então, enquanto me fechavam, eu tentei
conversar algo, e então a obstetra disse que daquele jeito eu ia ficar cheia de
gases (pelo visto isso deveria ser óbvio pra mim, mas eu não sabia disso) e
logo em seguida alguém disse: “Tá achando que tá na terapia é?” Meus olhos
lacrimejaram. Fiquei muito mal nesse momento por perceber que todas aquelas
pessoas ali não entendiam a importância de um momento como aquele. Não só pra
mim e pro meu marido. Mas pra humanidade. O nascimento é um evento maravilhoso
e o modo que nascemos influencia absurdamente na nossa sociedade. Fechei meus
olhos e fiz uma pequena oração pedindo mais sensibilidade, mais amor e mais
humanidade praquelas pessoas. Se elas não viam o nascimento como um milagre da
vida, imagino como elas viam as outras coisas da vida. Então quando abri os
olhos senti uma coceira enorme. Nos olhos e na boca. Muito angustiante. Pedi
para alguém vir coçar meus olhos porque estava insuportável e então alguém
disse: tira o aparelho de pressão do braço dela pra ela coçar. OI? Na hora de
abraçar meu filho não pode mas pra coçar o olho e não incomodar ninguém aí pode
desamarrar o braço? COMO É ISSO MINHA GENTE? E a tristeza me consumia. Eu
percebi que estava ficando meio grogue. Foi quando notei que estava sozinha na
sala com a técnica em enfermagem. Achei que ela deveria estar fazendo algum
curativo. Fiquei calada. Então uma enfermeira entrou e começou a dar uma bronca
nela. Não entendi direito aquilo, na verdade só depois que a memória veio
inteira: ela estava tirando pelos encravados da minha virilha. Sem pedir
autorização, sem cogitar que ali estava uma pessoa. Após a bronca, ela se
retirou. Mais uma vez confirmei: ali eu era tratada como pedaço de carne. Por
um momento desejei morrer (drama Queen + plasil + raquidiana). Só lembro que
depois acordei na sala de recuperação me tremendo muito mais do que no início
da cirurgia. Achei esquisito, porque eu não estava mais com medo, não estava
com frio. Chamei alguém que avistei passando e perguntei: essa tremedeira é
normal? Ela disse: é, é a morfina da anestesia. Perguntei: quando vou para o
quarto? Ela disse algum horário que eu não me recordo. Da sala de recuperação
eu lembro de cada segundo, de cada tremor, de cada coçada de olho, de boca.
Lembro da luz branca na minha cara. Lembro do silêncio. Do frio. Pensei que se
eu convulsionasse ninguém ia ver porque não tinha ninguém ali. Finalmente
chegou alguém e me levou para o quarto. E aí encontrei minha mãe e meu marido e
falei o que consegui falar: o tremor é da anestesia. Perguntei pro meu marido
se tinham dado leite artificial e ele disse que mesmo ele pedindo, eles deram,
porque era protocolo do hospital (?). Logo depois meu bebê chegou e foi um
sentimento tão ruim não poder pegá-lo, cheirá-lo. Tinha que ficar ali, deitada
e ainda queriam que eu não conversasse. Um sentimento de impotência. Nos dias
seguintes foi muito ruim. A recuperação de uma cirurgia desse porte é pra ser
levada a sério. Senti por 15 dias dor na coluna da anestesia. Não conseguia
ninar meu bebê. Não conseguia dar banho nele. Não conseguia tirar e colocá-lo
na cama. Foi horrível não poder me doar como eu queria para meu bebê.
Sair
do hospital foi maravilhoso. No caminho pra casa sentia como se meus órgãos
estivessem soltos. Só consegui ver a cicatriz muito tempo depois. Só consegui
tocá-la muito mais tempo depois ainda. Mas penso que a cicatriz física não é
nada comparado ao que eu sinto ao saber que essa é a maneira que pessoas vem chegando ao mundo. Fico pensando se recebêssemos uma pessoa em nossa casa de maneira tão violenta. E depois as pessoas pedem mais sensibilidade da
sociedade, reclamam da violência. E desconsideram a vontade de um ser vivo que
está chegando. Essa relação com o parto normal, de nojo, de medo da “dor”, de
pura ignorância diz muito da maneira que enfrentamos a vida. Mas ainda há
esperança. Espero que esse relato tenha
te afetado. Não foi fácil escrevê-lo. Mas eu sei da importância de
relatos assim para outras mulheres e pra mudar a maneira que o nascimento vem
sendo lidado no Brasil. Eu ainda terei meu VBAC (vaginal birth after
cesarean), de maneira natural, Humana, sensível e bela.